III/H



111.

É necessário agora fazer uma breve pausa apenas para lembrar por que motivo estamos explicando todas estas coisas. Não estamos narrando a História da Igreja, nem fazendo propriamente um estudo do Renascimento.

Fizemos uma primeira exposição do que é um Concílio Ecumênico e por que motivo são convocados. Apresentamos a problemática geral dos primeiros dezenove Concílios e passamos a tentar compreender quais foram os problemas que exigiram a convocação do Concílio Vaticano I e principalmente do Concílio Vaticano II. É precisamente isto o que estamos fazendo agora.

A convocação do Concílio Vaticano II está relacionada com alguns problemas do homem contemporâneo de extrema gravidade e complexidade. São problemas que se acumularam e se superpuseram ao longo dos últimos séculos, e o que estamos fazendo é justamente uma análise da gênese e do desenvolvimento destes problemas, e não simplesmente expondo a História da Igreja.

112.

A Companhia de Jesus surgiu já no final do movimento renascentista. Ela perpetuou a educação renascentista para dentro de uma época que já não vivia na Renascença, e que iremos considerar mais detidamente na Quarta Parte desta Introdução.

Vamos voltar agora ao Renascimento antes do surgimento da Companhia de Jesus, isto é, à época do pleno Renascimento.

É obvio que em uma sociedade organizada do modo que foi descrito e que formava seus cidadãos segundo os padrões que delineamos seria apenas uma questão de tempo para aparecer não apenas uma, mas muitas, que começassem a fazer perguntas deste tipo:

Mas para que buscar tanta glória?
Para que tanto estudo?
Para que tanta competição?
Por que tanta ambição?
Qual o sentido de tudo isto?

e, ao mesmo tempo, se vissem impossibilitadas de encontrarem uma resposta, simplesmente porque não havia respostas. Todas aquelas coisas simplesmente não tinham um sentido.

Perguntas deste tipo não eram novidades na história.

Tanto os filósofos como os cristãos de outras épocas também se faziam perguntas semelhantes, mas na Renascença estas questões adquiriram uma matiz nova que as fazia diferir muito daquelas que até então se faziam os filósofos e os cristãos.

Em uma história que não cabe examinar aqui, as grandes questões com que a filosofia grega se ocupou iniciaram-se com o hábito dos primeiros filósofos de contemplarem a natureza. Ao surgirem estas questões, o próprio hábito paciente e engenhosamente cultivado de contemplarem a natureza conduzia espontaneamente estes filósofos a uma série de respostas a estas mesmas questões.

As grandes questões levantadas pelos cristãos, por outro lado, se iniciavam pela renúncia a si próprios e pela subseqüente meditação dos dados da Revelação contidos nas Sagradas Escrituras. Através disto, à medida em que surgiam estas questões, elas eram também com relativa facilidade conduzidas a uma série de respostas.

Mas os questionamentos do homem da Renascença não se baseavam na consideração do espetáculo da natureza, nem na da sublimidade da Revelação divina, mas no panorama irracional de uma sociedade construída sem sentido em que este homem sofria e estava mergulhado de fato, tanto por laços físicos como psicológicos, pela vida que ele levava, pelas coisas a que era solicitado e pela educação que a tanto o havia condicionado. O material sobre cuja consideração eram suscitadas estas questões não poderia conduzí-lo a resposta alguma. Tanto quanto dele dependesse, ao contrário, só poderia conduzi-lo ao desespero da inteligência.

Com isto inaugurou-se a era de uma sociedade moderna que está sempre se questionando sobre estas questões fundamentais, sem nunca conseguir chegar a conclusão alguma. Chega-se, ao contrário, ao abafamento do próprio desejo, inato ao homem, de conhecer as verdades mais altas, devido ao desespero existencial que o estímulo destes questionamentos, que em outras circunstâncias havia sido benéfico a filósofos e cristãos, inevitavelmente conduziria.

Um homem nestas condições, não podendo buscar satisfação e realização por este caminho, terá que buscá-lo por outros menos nobres e menos condizentes com a natureza humana. Em todas as épocas, não só na Renascença, houve inumerável quantidade de pessoas que seguiram por estes caminhos menos nobres de busca de satisfação pessoal. Isto se devia, entretanto, à própria fraqueza humana e aos costumes sociais imediatamente dela derivados, não a uma sociedade como que sofisticadamente estruturada por uma engenhosidade humana intencional que suscitasse de uma fonte nova estas perguntas no homem e simultaneamente o condicionasse a não poder encontrar as respostas.

Foi na época da Renascença que o homem, pela primeira vez, deram início a um sofisticado processo de constante reorganização social no qual quem se questionasse o sentido da vida a que seria continuamente submetido não só se visse incapacitado para encontrar uma resposta, como também passaria a incorporar à sua psicologia o reflexo de abafar a mau estar que estas mesmas questões passariam a ocasionar. Com isto os homens na realidade passaram a viver mentalmente presos a um mundo sem sentido.

Os homens com isto passaram também a ficarem progressivamente sempre mais impossibilitados de desenvolverem uma das mais nobres faculdades intelectuais que ele possui e que o diferencia tão caracteristicamente da vida animal em geral, aquela faculdade pela qual é possível apreender o sentido e a coerência do mundo ao seu redor e, compreendendo o sentido de todas estas coisas, pautar a sua vida segundo esta ordem.

Em um mundo absurdo como o da Renascença, podia-se esperar do homem um desenvolvimento ilimitado de todas as suas qualidades, tão ilimitado que isto lhe poderia ofuscar a mente e não lhe fazer perceber que este tipo de desenvolvimento não passa de um desenvolvimento apenas sob alguns determinados aspectos, um desenvolvimento que não pode ser entendido na simples acepção do termo.

113.

Há uma maneira de exemplificar o comentário anterior chamando a atenção para um filme recente de Franco Zefirelli sobre a vida de São Francisco de Assis.

Neste filme, intitulado Irmão Sol, irmã Lua, trabalho de uma inegável rara beleza, Zefirelli fêz inúmeras alterações na história real de São Francisco de Assis para que esta concordasse com a estética do conjunto de seu longa metragem. Apesar das mutilações históricas, o diretor, em parte justamente por causa delas, conseguiu no final obter um efeito de conjunto de modo a fazer com que o expectador percebesse mais vivamente alguma coisa do que foi o espírito franciscano.

Mas no final deste filme há algumas cenas que merecem maiores comentários.

Nestas cenas São Francisco, tocado por algumas dúvidas, dúvidas que na realidade não existiram, dirige-se ao Vaticano para pedir conselhos ao Papa Inocêncio III.

A burocracia vaticana permite-lhe o encontro com o Papa, mas impede-o de falar como ele desejaria ter falado, com simplicidade e com suas próprias palavras.

Em vez disso, é-lhe entregue um pergaminho enrolado em duas barras de madeira onde há uma mensagem protocolar redigida em latim que São Francisco teria o privilégio de ler de joelhos, no interior da Basílica de Latrão, diante do Papa e do Colégio dos Cardeais reunidos em volta dele, receber a bênção apostólica e retirar-se.

Estamos no ano de 1210.

São Francisco entra na imensa Basílica de acordo com o cerimonial e ajoelha-se. Faz-se um imenso silêncio. Diante dele, em um trono muito elevado, está sentado Inocêncio III.

São Francisco desenrola o pergaminho e inicia a leitura do texto latino.

A um certo momento da leitura, mal iniciada, Francisco começa a gaguejar. Cai o pergaminho de suas mãos. O barulho das barras de madeira em que o pergaminho estava enrolado, ao bater no mármore do piso da Basílica, ecoa por todo o templo.

A cerimônia na verdade já estava toda prevista no cerimonial e os cardeais presentes já conheciam o texto que haveria de ser lido. Ninguém esperava que fosse acontecer qualquer imprevisto, mas o jovem parecia um pouco desajeitado e provavelmente deveria estar bastante emocionado. Por causa disso, durante algum tempo, ninguém ousou fazer nenhuma pergunta. O que todos estavam imaginando era que São Francisco retomasse o controle de suas emoções, reerguesse o pergaminho do solo e simplesmente continuasse a leitura.

Mas então São Francisco, em vez de levantar o pergaminho, levantou os seus olhos para o Papa e para os Cardeais e começou a questioná-los, não pelo pergaminho, mas com suas próprias palavras.

- "Por que?"

perguntou pela primeira vez, sem acrescentar mais nada, como se fosse evidente para todos qual fosse o restante da pergunta.

- "Por que?"

perguntou uma segunda vez.

- "Por que?"
- "Por que tanta riqueza?"
- "Por que tanta ostentação?"
- "Olhai os lírios do campo.
Eles não tecem nem fiam e,
no entanto, nem Salomão se vestiu jamais
como um deles."
- "Olhai os pássaros do céu.
Não ajuntam provisões nos celeiros,
e, no entanto,
a Providência não lhes deixa faltar
o seu sustento."

Para quase todos os presentes, estupefatos, estas palavras foram um escândalo. Era mais do que um escândalo, era o cúmulo, era um mendigo ignorante querendo ensinar o Evangelho aos Cardeais da Santa Igreja Romana!

Os cardeais se levantam; estão ofendidos. Inicia-se um tumulto.

Inocêncio III, no silêncio, sentado em seu trono, também duramente atingido, mostra, entretanto, pela sua fisionomia, que percebe que aquele pobrezinho ajoelhado vários metros à sua frente está questionando com razão.

114.

O restante da seqüência do que veio a acontecer dispensará aqui a nossa atenção. A pergunta que cabe agora é o que se poderá dizer de uma cena como esta.

Deve-se dizer que é evidente que estes fatos, assim apresentados, não poderiam ter acontecido. Não, pelo menos, em 1210.

São Francisco está questionando o sentido do mundo à sua volta, não simplesmente, mas ao modo dos problemas existenciais do homem moderno que só começaram a existir, como regra geral, a partir da Renascença.

Na época de São Francisco o sentido do mundo fazia-se evidente para quem fosse capaz de se fazer seriamente esta pergunta; as pessoas podiam se recusar a aceitá-lo, mas não verem-se na impossibilidade de encontrá-lo. Em sua época São Francisco poderia considerar que a riqueza fosse um pecado, mas não transformá-la em um problema existencial.

A primeira vez na história humana em que surgiu a possibilidade geral de se configurar o problema existencial tal como o conhecemos hoje foi na Renascença. Este problema existencial não consiste em não encontrar sentido no mundo, mas no desespero de poder encontrá-lo. Antes disso as pessoas podiam viver uma vida sem sentido, mas quando se davam suficientemente conta deste fato, não lhes era vedada uma resposta.

115.

Problemas deste tipo acontecem com o homem moderno, por exemplo, quando ainda jovens começam a estudar com vistas a uma carreira, sempre supondo que, sendo admitidos pelos exames vestibulares às faculdades, chegarão os bons tempos.

Mas, uma vez na faculdade, percebem que os bons tempos na realidade só chegarão após a formatura.

Uma vez colado o grau, percebem porém que os bons tempos somente chegarão quando se conseguir a estabilidade de um bom emprego.

Mas, uma vez alcançado o bom emprego, percebem que o tempo bom só chegará com o casamento.

Mas, com o casamento, percebem que o tempo bom só chegará quando for possível comprar uma casa própria.

E assim o processo continua, até que um dia percebem que o tempo bom ou já passou ou então já não virá mais.

Quando chega o momento em que se percebe, ou começa-se a perceber estas coisas, passa-se então a questionar por que está-se fazendo tudo isto, qual o sentido de uma vida como esta. Não o encontrando, nem podendo encontrá-lo, as pessoas passam a se desinteressarem pelo seu próprio trabalho e se tornarem medíocres na atividade que elas próprias escolheram e que tanto esforço empregaram para nela alcançarem alguma excelência. Passam a buscar uma compensação sensorial ou material pela falta de sentido em que atolaram suas vidas, uma compensação freqüentemente tão absurda quanto a própria vida que eles antes levavam, ou então passam a adotar um pseudo sentido para a sua vida.

Tudo isto, coisa para a qual algumas pessoas procuram depois tratamento psicológico e analítico, não é, na realidade, um problema psicológico no sentido moderno que se dá a esta expressão, mas um problema histórico e filosófico, e também religioso.

Procurar uma terapia psicológica e analítica para tais problemas é uma situação semelhante à do médico psiquiatra que ri do colega psicólogo que submetia a sessões de psicanálise um paciente em que não só o psicólogo ignorava, como também sequer conseguia atinar, que se tratava de um portador de tumor cerebral.

Uma crítica semelhante freqüentemente o filósofo pode fazer a ambos. Não por estarem fazendo a psicanálise de um tumor cerebral, mas de um problema filosófico de origem histórica.

116.

Na verdade, portanto, quando Zefirelli colocou aquelas questões na boca de São Francisco, São Francisco não estava questionando o Papa Inocêncio III, mas o homem de hoje que assistia ao filme.

Este foi justamente um dos motivos porque o filme atraíu tantas pessoas às salas de projeção.