DOR POR TÃO GRANDES MALES

Ao ouvir isto, senti um golpe mais doloroso ainda e, calculando os males que daí haveriam de se seguir, rompi em pranto pela terra inteira e dizia a Deus:

"Tira a minha alma do meu corpo e liberta-me destas misérias e desta vida de morte, e leva-me àquele lugar onde nem outro dirá coisa semelhante nem eu terei que ouvi-la. Sei muito bem que apenas saia deste mundo, me esperam as trevas exteriores, onde há muito pranto e ranger de dentes; porém mais doce há de ser para mim ouvir o ranger de dentes se não ouvir os que dizem tais blasfêmias".

Vendo-me meu amigo a chorar tão veementemente:

- Não é este, momento de prantos, - me disse - pois não irás recuperar com as tuas lágrimas os que já se perderam e os que ainda estão se perdendo, já que não creio que o mal haverá de parar por aqui. O que se deve ver é como apagar este incêndio e conjura esta pestilência, pelo menos o quanto nós conseguirmos. E se queres seguir o meu conselho, eu te diria que, abandonando todas estas lamentações, componhas um discurso de exortação dirigido aos que se acham nesta enfermidade e revolta, para a saúde deles primeiramente e de universal proveito também para todos os homens. E eu tomarei este teu livro como se fosse um remédio e o colocarei nas mãos destes enfermos, pois há entre eles muitos amigos meus que não levarão a mal que eu chegue até eles uma, duas ou muitas vezes e sei que muito rapidamente se verão livres desta pestilência.

- Bem se vê - repliquei eu - que tu medes pela minha caridade o meu talento; mas a verdade é que eu careço de eloqüência e a que parece que tenho me envergonho de empregá-la em assuntos como o presente, e de nada me envergonho tanto como de todos os gentios, os presentes e os que ainda virão. Eu que constantemente os recrimino, não menos por suas doutrinas do que pela licenciosidade de seus costumes, agora me vejo forçado a revelar-lhes nossas misérias. E na verdade, se os gentios se derem conta de que há entre os cristãos homens que têm tal guerra declarada à virtude e à filosofia, que não só andam eles muito distantes dos trabalhos que sua prática demanda, mas que não suportam nem que se fale dela, e que sua loucura não para aí, mas que expulsam de todas as partes a quem a aconselha e abra a sua boca sobre ela; se disto, repito, se derem conta, temo não nos considerem nem como homens, mas como feras e monstros com forma humana, como demônios exterminadores e inimigos da natureza comum. E o mal é que assim sentenciarão não só sobre os verdadeiros culpados, mas sobre todo o povo cristão.

E rindo-se o outro:

- De brincadeira - me disse - estais falando agora, pois a teu raciocínio vou opor um outro mais oportuno, se é que tudo se resume em teu medo que se inteirem por tuas palavras do que todo o mundo já sabe faz tempo pelas obras. O fato é que, como se um espírito perverso tivesse tomado todas as almas, não há boca que não transborde de comentários sobre este assunto. E o mesmo se fores à praça pública ou às salas de consultas dos médicos ou a outra parte da cidade onde se costuma formar os mexericos de pessoas desocupadas, verás como com muito gosto se ri todo mundo. E não há outro tema ou motivo para todo aquele riso ou comédia, senão o contar e mais contar das transgressões cometidas contra aqueles homens santos. E é assim que à maneira de guerreiros que lutaram em mil batalhas e levantaram gloriosos troféus e se gabam ao lembrar de suas façanhas, assim se pavoneia esta gente de seus feitos. Ali tu ouvirás um que diz:

"Eu fui o primeiro que levantei a mão a tal monge e lhe dei uma surra".

E outro:

"Eu antes de todos encontrei o seu abrigo".

"Mas eu",

replica um terceiro

"fui quem mais incitou o juiz contra ele."

E outro terá como façanha digna do mais alto elogio tê-los levado ao cárcere, aos maus tratos da prisão e haver antes arrastado pela praça pública aqueles santos varões. E assim outro e outra coisa. Logo rompem todos em uma gargalhada. Isto nos conluios dos cristãos. Quanto aos gentios, riem-se dos zombadores e dos zombados: De uns pelo que fizeram; de outros, pelo que sofreram. E tudo anda cheio de uma espécie de guerra civil, ou melhor, de algo mais grave que uma guerra civil. Os que fizeram uma guerra civil, quando mais tarde se recordam dela, maldizem mil vezes aos que a promoveram e atribuem a algum gênio maléfico quanto nela tenha acontecido, e são justamente os que mais se envergonham quem nela mais se distinguiram; estes, ao contrário, gabam-se de suas transgressões. E não só porque esta guerra é mais sacrílega que a outra e porque se faz contra homens santos que a ninguém ofenderam, mas porque se persegue homens que não sabem fazer dano a ninguém, e só estão dispostos a sofrer eles próprios.

3.

- Alto! - disse-lhe eu -, alto! Não sigas com teus relatos, se não queres que irremediavelmente exale meu ultimo alento. Deixa-me que volte à minha casa com pelo menos um pouco de força. O que tu me ordenaste se cumprirá completamente; só te rogo que não me contes mais nada, mas anda e roga que se dissipe esta nuvem de tristeza e que o próprio Deus a quem fazem guerra me dê alguma ajuda para remédio dos mesmos que o combatem. E certamente me dará, sem dúvida alguma, sendo benigno e amoroso, pois

"não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva"
Ez. 18, 23